mergulhem-se

quinta-feira, 24 de junho de 2010

As Brasas - Sándor Márai, Romance

Estou em um estado de fascinação tal que é pretensioso querer que as palavras me imitem. Sempre tenho o cuidado de escrever sobre um livro logo após terminá-lo para que as minhas impressões saiam da forma mais viva e genuína possível. Embora isso tenha me funcionado bem, muitas vezes não me parece saudável no ponto em que eu não estou preparada para terminar de digeri-lo. Enfim. Que saia o indigesto. Peço desculpas se for passional demais.

Sandor Márai neste texto se apresenta com uma fluidez, elegância e densidade que é quase impossível não entrar na dança - uníssono do romance. É como escutar a voz grossa de Nina Simone, bruta e ao mesmo tempo lisa. Espessa e lisa. Somos tomados pelo texto. Sedimentados pelo texto e fluímos para dentro de si mesmos com carinho - não só, mas delicadamente sempre. Sándor Márai consegue ser profundo sem ser ácido, consegue enfeitiçar-nos sem machucar tanto quanto Clarice e outros; nos situa no tempo e espaço sem ser excessivo como algum escritor desses realistas; profundo sem abusar da nossa capacidade de suportar sentimentos. Ele vai na medida assim como Hermann Hesse tão piedoso com as nossas feridas, mas sem ignorá-las, alcançando-as mansamente.

A história de "As Brasas" se passa em um castelo da Hungria, onde um velho general do império austro-húngaro recebe a visita de um antigo amigo após quarenta e um anos sem vê-lo, desde que este último desaparecera repentinamente sem dar explicações. O motivo de seu desaparecimento? É o que com esse retorno esperamos desvendar. Algo acontecera na véspera deste desaparecimento, um segredo o qual os separaram por quarenta e um anos e que Sándor Márai desnovela através de solilóquios (lindos, diga-se de passagem) feitos pelo anfitrião ao visitante, que acabam por ocupar quase o livro inteiro. Sándor Márai parece saber muito sobre a solidão humana, após tantos anos exilados, anos de espera e é assim que toma a boca do personagem ao relatar os quarenta e um anos que dividem o encontro dos dois amigos. É um romance que fala de paixão, honra, solidão, mas sobretudo amizade - o fio que deve sustentar o homem através da vida, algo que não desvendamos, mas inevitável não encarar.

"Viveram lado a lado desde o primeiro instante, como gêmeos no útero materno. Não precisaram fazer pactos de amizade como costumam fazer os garotos dessa idade, que se lançam com paixão e ostentação a rituais ridículos e solenes, dessa forma inconsciente e grotesca com que o desejo se manifesta entre os homens, quando decidem pela primeira vez arrancar do resto do mundo o corpo e a alma de outra pessoa para possui-la com exclusividade. O sentido do amor e da amizade estava todo ali. A amizade deles era séria e silenciosa como todos os grandes sentimentos destinados a durar uma vida inteira. E como todos os grandes sentimentos, também continha certa dose de pudor e de culpa. Ninguém pode se apropriar impunemente de uma pessoa, subtraindo-a de todas as outras." As Brasas, página 32


As Brasas
Sándor Márai
Cia das Letras
172 páginas








Sándor Márai (11 de abril de 1900 — 22 de fevereiro de 1989), foi um escritor e jornalista húngaro (nascido no atual território da Eslováquia)

Um comentário:

Julia Mendes disse...

Que bom... Até hoje, para mim, tem sido o que importa. (essa troca)

beijo