OS FESTIVAIS antigamente eram festejos dos outros. Havia a citação obrigatória: "Em seguida, o festejado autor...". Ora, se Maomé não vai à montanha que a montanha vá a Maomé, donde: se ninguém festeja os escritores, nada de mais que os próprios se festejem.
Os latinos tinham para isso uma frase amarga: "Asinus asinus fricat". Se os burros podem se coçar uns aos outros, a analogia é válida: que os inteligentes cocem os inteligentes.
Confraternização da Cultura Brasileira (Noite da). Palavras assim existem para essas horas. O gênio passeando pelos corredores empoeirados do Shopping Center, aferindo o próprio sucesso. A crítica recebeu muito bem o livro, o Adonias chamou-o de Faulkner e o Brito Broca de Flaubert.
Ninguém sabe o que está perdendo, mas ali está Flaubert dentro de Faulkner, e ambos dentro do sujeito magro e de paletó mal feito. Vem a bandeja dos salgadinhos e Faulkner se atrapalha com a azeitona que caiu do palito de Sartre (há Sartre também no Shopping Center).
Quem apanha a azeitona é o Dostoiévski do Piauí. Humildemente, com a insignificância de ovelha negra da classe, mastigo um magro pastel, sossegado e livre, perto do bar onde servem uísque. Aperto a mão de Sainte-Beuve e cumprimento obliquamente Henry Miller, que passa de braços dados com o Antonio Callado.
Pound me pergunta onde tem água mineral, eu aponto o fundo do bar, onde Balzac conta uma anedota envolvendo papagaio e mulher da vida. Saio do bar, evito Tolstói, que me deve R$ 500, espremo um lugarzinho entre Faulkner-Flaubert e empurro John dos Passos para conseguir um sanduíche. Abro o pão: tiraram o salame. Passa perto de mim o próprio Homero mastigando meu salame. Confraternização da cultura universal.
Armaram minha humilde tenda em frente à barraca do Graham Greene, o qual perambulava pelo Brasil como um delegado de um congresso pró-liberdade de não sei mais o quê. Não adiantou o poeta Walmir Ayala armar comício em frente à minha tenda: todo mundo ia para a barraca do autor do "Terceiro Homem".
Mas não havia terceiro, nem segundo, nem homem algum na barraca do Graham Greene. Pela minhas barbas passaram Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção e Antonio Carlos Villaça. Naqueles tempos, os três rezavam e liam pelo mesmo catecismo e cartilha. Procuravam o autor de "Ensaios Católicos" para uma missazinha no Mosteiro de São Bento ou uma palestra sobre a Eucaristia no Centro Dom Vital.
Procuraram, procuraram, esperaram, esperaram, até que desanimaram: Graham Greene não viria ao Festival. Começaram a empilhar os livros, as fãs se dispersavam e a santíssima trindade do Centro Dom Vital foi para casa.
Saí de lá quando as luzes se apagavam. Não havia jantado e de repente desemboquei na calçada do Bolero, dando sopa para um sanduíche com chope honesto. Do andar de cima vinha o som da orquestra, aquele pianista que parece o Orson Welles dando socos no piano sem marfim.
Subi para ver as caras, há muitos anos não penetrava naquela pastagem do pecado. No canto mais escuro da sala, silhueta enorme e meio curva, vi Graham Greene com uma loura a tiracolo. Greene nem tirara da lapela aquele laço com nome e endereço que os congressistas usam para chamar a atenção dos que não dão atenção a nada. A orquestra tocava "A Noite do meu Bem", mas Greene teimava em cantar Siboney. A loura ria e o escuro da sala acentuava a caverna de sua boca com maus dentes.
Desci correndo à procura de um telefone. Mas as redações estavam fechadas. Tentei telefonar para o Alceu, o Corção, o Villaça. Mas o único telefone que encontrei foi o do Corção, inútil por sinal, o professor desliga seu aparelho após o canto das "Completas" e só torna a ligá-lo após as "Matinas" do novo dia do Senhor que se lhe abre à frente.
Villaça devia estar dormindo, e nem o Pão de Açúcar em erupção o despertaria. Saí então em busca de testemunhas. No "Le Roind Point" encontrei Antonio Maria e Paulo Francis. Voltamos ao segundo andar do Bolero. Graham Greene já tinha saído. Mas o garçom confirmou a história: "O inglês deu uma boa gorjeta. Sim, sim, levou a loura".
(coluna retirada da página Ilustrada da Folha de SP do dia 4/12/09)
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sábado, 16 de janeiro de 2010
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
Manhã sem vestígio - Carlos Heitor Cony, Crônica
FAZ TEMPO: tinha as manhãs livres, alma e corpo também livres. Conhecia um atalho que subia para o morro onde havia paisagem e solidão. Uma antiga estrada de saibro, toda arrebentada, parecia-me impossível para carro. Ia a pé, então saboreando os pasos e o sol que descia sobre meus ombros e me abençoava.
Fui lá diversas vezes. Geralmente, ia de mãos abanando, apenas pelo prazer de andar, ter o sol e a manhã. Raramente levava um livro. De qualquer forma sempre sabia que ia para um lugar onde podia ficar sozinhi e tranquilo, pensar em coisas que aqui embaixo já ia perdendo o hábito de pensar.
Encostava a cabeça num pé de quaresmeira, que, em determinadas épocas do ano, em fevereiro, sobretudo, ficava roxo. Deixava o maço de cigarros ao lado e consumia minha manhã e minha liberdade procurando ressuscitar um trecho de minha vida, uma etapa de minha caminhada. Na realidade, nada ia procurar, deixando que a liberdade e a manhã me levassem a um roteiro que escolhia na hora, sem saber onde iria dar, nem mesmo se me daria em algum lugar.
Destacava um ano: 1943, por exemplo.
E começava por janeiro: Itaipava, passeios a cavalo, padre Castro Pinto lendo os telegramas que falavam da guerra, o tombo do Macário, a noite em que fiquei preso na despensa - a chave quebrara na fechadura e tive de dormir em cima dos sacos de farinha, só no dia seguinte vieram me buscar.
- Isso não foi em 1943. Foi em 42. Talvez em 44. Talvez no ano passado em Marienbad.
Pois, em manhã assim, ouvi de repente um ruído: o carro subia, gemendo, a velha estrada. Logo vi, coberto pelas moitas do capim mais alto, a capota do carro fazendo a curva e, logo depois, os gordos pneus, maltratados pelas pedras e pelo calor que o carro me trouxe subitamente quando estacou a minha frente.
- Desculpe, não viemos incomodar ninguém.
A frase era ociosa, mas o homem que saiu do volante julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa. Eu poderia dizer coisa parecida, "também não quero incomodar ninguém", mas preferi ficar quieto e aguardar os acontecimentos, que logo começaram a acontecer.
O homem do volante deu a volta por trás do carro e abriu a outra porta. Do ângulo que estava, deitado quase no chão, não via quem vinha ali. E vi o primeiro uma perna gordinha e queimada de praia. Depois, um joelho adolescente, e logo uma saia azul-marinho.
Não olhei mais nada. Vi depois o vulto da colegial sumindo pelo início da mata, os cabelos louros batendo nos ombros, a blusinha justa falando de uma seiva que eu sentia sem precisar olhar para a sua juventude.
Sei lá quanto tempo demoraram. Pensei no ano de 1943, pulei para o de 1952, recitei mentalmente todos os poemas de Verlaine que sabia de cor, bole a história para um conto encomendado por uma editora e já estava disposto a vir embora quando o casal ressurgiu das matas.
Olhei bem a cara do homem. Era mais velho que eu, tinha uns 40 anos, ou mais. Aliança no dedo e anel de advogado ou de contador. Não olhei a cara da moça nem a blusa, para não ver as iniciais do colégio.
Novamente a saia azul-marinho, o joelho adolescente, a perna gordinha, o barulho da porta fechando, o ronco do motor, a capota sumindo pelas moitas de capim.
Estava só, novamente. Nada parecia ter acontecido ali. À minha frente, nada indicava ter um carro parado ali, o homem com anel no dedo, o joelho adolescente e forte, a saia azul-marinho de um colégio ignorado. Nem mesmo a marca dos pneus ficara no saibro castigado pelo peso do automóvel. Nenhum vestígio na manhã de sol.
Então vim embora, sentindo na garganta uma coisa amarga que me faz ainda ter vergonha de mim mesmo e, ao mesmo tempo, sentir uma impotente inveja das coisas que podem acontecer com os outros, tornando-me cúmplice e vítima de um mundo que eu não condeno, apesar de não amá-lo.
(texto extraído da página Ilustrada da Folha de S.P de hoje, 2/10/09)
Fui lá diversas vezes. Geralmente, ia de mãos abanando, apenas pelo prazer de andar, ter o sol e a manhã. Raramente levava um livro. De qualquer forma sempre sabia que ia para um lugar onde podia ficar sozinhi e tranquilo, pensar em coisas que aqui embaixo já ia perdendo o hábito de pensar.
Encostava a cabeça num pé de quaresmeira, que, em determinadas épocas do ano, em fevereiro, sobretudo, ficava roxo. Deixava o maço de cigarros ao lado e consumia minha manhã e minha liberdade procurando ressuscitar um trecho de minha vida, uma etapa de minha caminhada. Na realidade, nada ia procurar, deixando que a liberdade e a manhã me levassem a um roteiro que escolhia na hora, sem saber onde iria dar, nem mesmo se me daria em algum lugar.
Destacava um ano: 1943, por exemplo.
E começava por janeiro: Itaipava, passeios a cavalo, padre Castro Pinto lendo os telegramas que falavam da guerra, o tombo do Macário, a noite em que fiquei preso na despensa - a chave quebrara na fechadura e tive de dormir em cima dos sacos de farinha, só no dia seguinte vieram me buscar.
- Isso não foi em 1943. Foi em 42. Talvez em 44. Talvez no ano passado em Marienbad.
Pois, em manhã assim, ouvi de repente um ruído: o carro subia, gemendo, a velha estrada. Logo vi, coberto pelas moitas do capim mais alto, a capota do carro fazendo a curva e, logo depois, os gordos pneus, maltratados pelas pedras e pelo calor que o carro me trouxe subitamente quando estacou a minha frente.
- Desculpe, não viemos incomodar ninguém.
A frase era ociosa, mas o homem que saiu do volante julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa. Eu poderia dizer coisa parecida, "também não quero incomodar ninguém", mas preferi ficar quieto e aguardar os acontecimentos, que logo começaram a acontecer.
O homem do volante deu a volta por trás do carro e abriu a outra porta. Do ângulo que estava, deitado quase no chão, não via quem vinha ali. E vi o primeiro uma perna gordinha e queimada de praia. Depois, um joelho adolescente, e logo uma saia azul-marinho.
Não olhei mais nada. Vi depois o vulto da colegial sumindo pelo início da mata, os cabelos louros batendo nos ombros, a blusinha justa falando de uma seiva que eu sentia sem precisar olhar para a sua juventude.
Sei lá quanto tempo demoraram. Pensei no ano de 1943, pulei para o de 1952, recitei mentalmente todos os poemas de Verlaine que sabia de cor, bole a história para um conto encomendado por uma editora e já estava disposto a vir embora quando o casal ressurgiu das matas.
Olhei bem a cara do homem. Era mais velho que eu, tinha uns 40 anos, ou mais. Aliança no dedo e anel de advogado ou de contador. Não olhei a cara da moça nem a blusa, para não ver as iniciais do colégio.
Novamente a saia azul-marinho, o joelho adolescente, a perna gordinha, o barulho da porta fechando, o ronco do motor, a capota sumindo pelas moitas de capim.
Estava só, novamente. Nada parecia ter acontecido ali. À minha frente, nada indicava ter um carro parado ali, o homem com anel no dedo, o joelho adolescente e forte, a saia azul-marinho de um colégio ignorado. Nem mesmo a marca dos pneus ficara no saibro castigado pelo peso do automóvel. Nenhum vestígio na manhã de sol.
Então vim embora, sentindo na garganta uma coisa amarga que me faz ainda ter vergonha de mim mesmo e, ao mesmo tempo, sentir uma impotente inveja das coisas que podem acontecer com os outros, tornando-me cúmplice e vítima de um mundo que eu não condeno, apesar de não amá-lo.
(texto extraído da página Ilustrada da Folha de S.P de hoje, 2/10/09)
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