mergulhem-se

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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

sobre a felicidade...

"Eu gostaria de saber se com outras pessoas o cérebro é responsável pela razão e pela felicidade. Comigo o cérebro consegue formar apenas uma pequena felicidade. Para formar uma vida, não basta. Pelo menos não para formar a minha vida."

(...)

"Há muito que dizer sobre a vida, mas essencialmente nada sobre a felicidade, porque assim que a gente abre a boca ela some. Nem mesmo a felicidade perdida suporta ser falada."




Herta Müller em "O Compromisso"

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O raio sobre o lápis, Maria Gabriela Llansol, poema...

V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não
pára de desenvolver-se e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das
metamorfoses flutuantes; é já dia, mas a noite que con-
duz a esperança no pensamento, e sobre si própria, não
acabou.
Não acabou definitivamente;
onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
«Olha-os, e não os mates.»

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O exílio do Imaginário, Roland Barthes

1. Tomo Werther nesse momento fictício (na própria ficção) em que ele teria renunciado a se suicidar. Só lhe resta então o exílio: não seria se afastar de Charlotte (ele já o fizera uma vez sem resultado), mas se exilar da sua imagem, ou pior ainda: interromper essaenergia delirante que se chama Imaginário. Começa então "uma espécie de longa isônia". Esse é o preço a pagar: a morte da imagem contra minha própria vida.


(A paixão amorosa é um delírio; mas o delírio não é estranho; todo mundo fala dele, ele fica então domesticado. O que é enigmático é a perda de delírio: se entra em quê?)


2. “No luto real, é a “prova de realidade” que me mostra que o objeto amado não existe mais. No luto amoroso o objeto não está morto, nem distante. Sou eu quem decido que a sua imagem deve morrer (e ele talvez nem saberá disso). Durante todo o tempo de duração desse estranho luto, terei que suportar duas infelicidades contrárias: sofrer com a presença do outro (continuando a me ferir à sua revelia) e ficar triste com a sua morte (pelo menos tal como eu o amava). Assim me angustio (velho hábito) por causa de um telefone que não toca, mas ao mesmo tempo devo me dizer que esse silêncio é de qualquer jeito inconseqüente, porque decidi elaborar o luto dessa preocupação: é a imagem amorosa que deve me telefonar; desaparecida essa imagem, o telefone, toque ou não, retoma sua existência fútil.


(O ponto mais sensível desse luto não será que devo perder uma linguagem - a linguagem amorosa? Acabaram os "Eu te amo".)

3. Quanto mais eu fracasso no luto da imagem, mais fico angustiado; mas, quanto mais eu consigo, mais me entristeço. Se o exílio do Imaginário é o caminho necessário para a “cura”, convenhamos que o progresso é triste. Essa tristeza não é uma melancolia, pois não me acuso de nada e não fico prostrado. Minha tristeza pertence a essa faixa de melancolia onde a perda do ser amado fica abstrata. Falta redobrada: não posso nem mesmo investir minha infelicidade, como no tempo em que eu sofria por estar apaixonado. Nesse tempo, eu desejava, eu sonhava, eu lutava; diante de mim havia um bem, apenas retardado, atravessado por contratempos. Agora, não há mais repercussão; tudo está calmo e é pior. Embora justificado por uma economia - a imagem morre para que eu viva – o luto amoroso tem sempre um resto: uma palavra volta sem parar: Que pena!”
 
 
4. Prova de amor: te sacrifico meu Imaginário — como se dedicava o corte de uma cabeleira. Assim talvez (pelo menos é o que dizem) terei acesso ao "verdadeiro amor". Se há alguma semelhança entre a crise amorosa e a cura analítica, elaboro então o luto de quem eu amo, como o paciente elabora o luto do seu analista: liquido minha transferência, e parece que, assim, a cura e a crise terminam.Entretanto, como já foi dito, essa teoria esquece que o analista também deve elaborar o luto do seu paciente (sem o que a análise corre o risco de não terminar nunca); do mesmo modo, o ser amado — se eu lhe sacrifico um Imaginário que estava entretanto grudado nele -, o ser amado deve entrar na melancolia de sua própria decadência. É preciso prever e assumir essa melancolia do outro ao mesmo tempo do meu próprio luto, e sofro, pois ainda o amo.
 
O ato verdadeiro do luto não é sofrer a perda do objeto amado; é constatar um dia o aparecimento de uma manchinha na pele da relação, sintoma de morte certa: pela primeira vez faço mal a quem amo, sem querer é claro, mas sem me desesperar.

5. Tento me soltar do Imaginário amoroso: mas o Imaginário queima por baixo, como um fogo mal apagado; cria brasa novamente; ressurge aquilo a que se renunciou; um longo grito irrompe bruscamente do túmulo mal fechado.


(Ciúmes, angústias, posses, discursos, apetites, signos, o desejo amoroso queimava de novo por todo lado. Era como se eu quisesse abraçar pela última vez, até a loucura, alguém que fosse morrer — para quem eu fosse morrer: eu procedia a uma recusa de separação.)


.....

trecho de Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes





de Egon Schiele

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Jazz, Ângela F. Marques

voltei a ouvir jazz com a fúria dos vinte anos
a loucura dos vinte e cinco
e a lucidez dos trinta:
ávida e serena.

Porto, 1988




 ouço aqui jazz(em)
o corpo e as palavras
vazias com o tempo
escorregadio por entre
os dedos sequiosos
de alguma verdura
perdida pelos cinquenta.

irónica idade tranquilamente
debruçada sobre
a morte.


Porto, 2012
para ler mais Ângela F. Marques

domingo, 8 de abril de 2012

Um não acabar mais, Wistawa Szymborska, poema

Sou quem sou.
Um acaso inconcebível
como todos os acasos.

Outros antepassados
poderiam afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
sairia voando,
de debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.

No guarda-roupa da Natureza
há trajes de sobra:
o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um assenta de imediato que nem uma luva
e usa-se obedientemente
até se gastar por completo.

Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém
muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para dar a pele,
para a mesa festiva,
ou algo que nadasse sob a lente.

Uma árvore presa à terra,
da qual o fogo se aproximasse.

Um mero cisco esmagado
pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.

Um indivíduo nascido sob a estrela ruim
que para outros seria boa.

E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?

Se não tivesse nascido
na tribo certa
e todos os caminhos se me fechassem?

Até agora, a sorte
mostrou-se me favorável.

Poderia não ter-me sido nada
a recordação de bons instantes.

Poderia ter-me sido negada
a tendência pata comparar.

Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração
quer dizer - alguém completamente diferente.




do livro de poemas "Instante", Wistawa Szymborska
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves
Editora Relógio D'Água

segunda-feira, 26 de março de 2012

Poeta, Rainer Maria Rilke

Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

sábado, 28 de janeiro de 2012

"O Cavaleiro Inexistente", Romance, Ítalo Calvino

Fiquei perturbada ao reler este livro, que há muito tempo havia lido em uma versão castellana no Uruguai. Não lembro de me chamado atenção como aconteceu desta vez. Pode ser uma questão de idioma, ou uma questão interna, que seja, nem sempre estamos para ler as coisas que lemos, e por isso re-ler pode ser um risco - um risco bom.

Aqui mistura-se realidade com ficção entre contextos históricos na época de Carlos Magno. O livro já inicia com algo completamente surreal, quando numa apresentação ao imperador, há um cavaleiro que não existe, ou seja somente sua armadura existe, ao levantar seu elmo, não há corpo nenhum que a preencha. Mas ele tem voz, títulos e se chama Agilulfo. À parte desta surrealidade, é incomum também a reação das pessoas que ao fim, o aceitam bem entre a sociedade. Todo o livro tem uma feição cômica incorrigível. Desde os nomes das personagens até os fatos improváveis e ridículos aos quais eles se sustentam. Comicidade que no fim podemos ler como sátiras/criticas à uma sociedade européia daquela época, mas não só, ao ser humano em geral. O cavaleiro que não existe, em oposto a toda cavalaria, é o único a se portar com honra, lealdade, limpeza e organização perfeitas, tem todos os atributos de um cavaleiro ideal, e ironicamente é o único que não é real.

Seu nome "Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpa Citeriore e Fez" é extenso para alguém que não existe. A seu lado tem um escudeiro louco, que não sabe nem mesmo que existe, como se só tivesse seu corpo é guiado apenas por suas necessidades primitivas, fome, sede, sono etc... Contrapõe seu mestre com um nome simples "Gurdulu", o que lembra o nome de um "bicho" ou "criatura". Está posta a dupla, o escudeiro que só tem o corpo e o cavaleiro que só possui o espírito.

Não só essas duas personagens, mas também Rambaldo, Sofrônia, Torrismundo e Bradamente e o próprio Carlos Magno, compõe o livro de forma engraçada e instingante o tempo inteiro. Uma amiga me disse que o livro lembra um pouco a literatura de Cortázar, e de fato concordo, os dois autores se lembram muito quando exploram o ridículo e o fantástico em seus livros.

"O Cavaleiro Inexistente" é de leitura fácil, rápida, simples, para mim, é um livro muito bom. Simples. Simples. Que muitos podem dizer "fraco", mas que parece um erro de leitura para mim, simplesmente por não ser pretensioso pode ser confundido como “fraco”, é simples, nunca simplório. Antes dele li o "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios" de Marçal Aquino, que apesar de ter um título bonito, e não ser uma má literatura, é muito mais pretensioso do que de fato seu conteúdo dá conta, parece que tenta ser muitas coisas, mas de fato não é nada. Sinto falta de mais sinceridade, até a simplicidade aqui parece ser forçada. Os momentos em que o livro consegue ser mais honesto - e às vezes acontece nos momentos mais "bobos" - são os que o tornam mais potente e bonito e aí sim, faz juz ao título.




O Cavaleiro Inexistente
Ítalo Calvino
Companhia de Bolso
115 páginas

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Funeral Blues, W. H. Auden, poema..

FUNERAL BLUES (1936)

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.


-----tradução Nelson Ascher------



BLUES FÚNEBRE


Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Poemacto II, Herberto Helder, poema..

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
--- Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como direi? -
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Jardim Botânico, poema, Adam Zagajewski



No Jardim Botânico de Cracóvia
deparei-me com uma árvore Asiática
com o nome de Metasequoia Chinesa – uma bela árvore
com folhas agulha achatadas.
Mas porquê metasequóia – e não apenas uma sequóia normal?

A metasequóia cresce além de si mesma?
Será que se eleva acima das outras árvores?
Até mesmo as plantas começaram a recorrer
ao misterioso jargão
de certos sábios académicos?

quarta-feira, 1 de junho de 2011

"Que é o amor? .... Baudelaire, poema

Que é o amor?
A necessidade de sair de si.
O homem é um animal adorador
Adorar é sacrificar-se e prostituir-se
Assim, todo amor é prostituição.

sábado, 14 de maio de 2011

Confissões de um comedor de ópio - Thomas De Quincey, ensaio...

‎ (imagem: The Opium Eater 1913, N. C. Wyeth)

De Quincey narra aqui parte de sua vida entrevada pelo uso do ópio e as motivações que fizeram chegar e sair dele. A escrita é corrida, sem lógica bruta, quase como de associação livre, mas de enorme coerência. Dizem que o estilo é pela influência do ópio, mas creio, como ele mesmo se descreve, é como se apenas estivesse "pensando alto". Talvez por isso se encaixe bem na escrita moderna, apesar de pertencer ao séc 18/19.

Talvez os propósitos deste relato perpassem pela instrução, ilustração dos efeitos opiáceos, ou já um estudo inicial sobre a exploração da mente a partir do sonhos - são muitos os descritos no livro. Mas como De Quincey também sinaliza na primeira página, creio que o livro seja um expoente para vir a tona com as "úlceras e cicatrizes morais, rasgando aquele véu de decência que o tempo, ou a indulgência para com a fragilidade humana, fez descer sobre ele [homem inglês]".

"Crime e desventura repelem, por instinto natural, a publicidade"

"desenredei, quase até o último nó, o emaranhado de cordas que me atava."

"Mas, como não acredito facilmente que um homem que tenha experimentado uma vez a divina luxúria do ópio se contentará com os prazeres grosseiros e mortais do álcool, dou por garantido que agora o comem os que nunca comeram; E os que sempre comeram agora comem ainda mais."

"A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio."

"Certamente é um absurdo dizer, usando linguagem popular, que o homem se disfarça com o álcool, pois, ao contrário, a maioria se disfarça com a sobriedade;..."


Confissões de um comedor de ópio
Thomas De Quincey
Ed. L&PM POCKET
146 páginas

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Última véspera - Inês Lourenço

Agora que um longo inverno se aproxima
com os seus labirintos de sombra,
regresso àquela véspera
de onde se parte sempre,
acesos os afluentes da espera
ou as fulvas crateras da guerrilha.

Agora que as asas do silêncio
se insinuam, na crescente mancha
dos espelhos, recebo os teus olhos
como um recém-nascido, vulnerável
e combalido pela luz recente, recebe
a água do seu primeiro banho.

segunda-feira, 28 de março de 2011

"Creo que tú..." Isabel Escudero

Creo que tú poco
a mí me quieres
porque quieros un poco
a otras mujeres,
y, siendo tú finito,
si se reparte el pastel,
queda poquito.




-------tradução (sem poesia, para cunho de entendimento)


Creio que você pouco
me ama
porque ama um pouco
a outras mulheres,
e, sendo você finito,
se o bolo se reparte
sobra bem pouco.

domingo, 20 de março de 2011

Silence, Thomas Hood, poema...

There is a silence where hath been no sound,
There is a silence where no sound may be,
In the cold grave--under the deep, deep sea,
Or in wide desert where no life is found,
Which hath been mute, and still must sleep profound;
No voice is hush'd--no life treads silently,
But clouds and cloudy shadows wander free,
That never spoke, over the idle ground:
But in green ruins, in the desolate walls
Of antique palaces, where Man hath been,
Though the dun fox or the wild hyaena calls,
And owls, that flit continually between,
Shriek to the echo, and the low winds moan--
There the true Silence is, self-conscious and alone.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Mar, John Banville, Romance..

Banville escreve com clareza, embora o conteúdo pareça sempre uma espécie de mormaço. E embora a escrita se alterne no tempo e espaço, é fácil de captar, nada se parece com Faulkner neste ponto (que aí sim, é um verdadeiro sargaço). Talvez seja a melancolia do livro que me faça sentir isso - este mormaço, talvez marasmo. Achei estranho no começo, simples demais, infantil e chato, depois fui absorvendo melhor (muitas vezes a chatice vem de mim, é claro). Mas não é nada mecânico - como se poderia dizer de Ian McEwan, que ninguém me ouça.

Alors, a história inicia quando Max Modern, retorna à praia de sua infância logo após ficar viúvo. A narrativa se alterna com este presente; as lembranças de criança e de uma família que costumava passar as férias ali; e toda a fase durante a doença de sua mulher. Gosto quando ele vai se aproximando da morte, incrível, porque parece que é quando o texto é mais genuíno, de resto, às vezes - contraditóriamente - parece sem vida. A última parte do livro é muito bonita e muito bem escrita, como quem escreve do estômago - é o que sinto falta no primeiro terço. A própria relação dele com a morte e com a indiferença... e eminentemente com a vida e o que poderia ter sido feito ou o que poderá ser feito, aún, dela. A enfim relação com o mar que é apontada nas últimas páginas, lindo. Isso tudo é o mais valioso do livro. As lembranças da infância ficam insossas perto da relação descrita com a sua mulher, depois ganham mais tônus. Eu não sei, realmente. É bonito. Tem partes bonitas, apesar de outras monotonias, e acho que algumas frases justificam a existência de um livro - ocorreu para mim com este. Mas demora.


‎"Ela está alojada em mim como uma faca e, mesmo assim, estou começando a esquecê-la" o personagem Max Morden sobre a mulher, Anna.


O Mar
John Banville
Ed. Nova Fronteira
222 páginas



John Banville (1945) é um escritor irlandês.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

"Baila..." - Isabel Escudero, poema

Baila, niña, baila,
y que se vea el caos
bajo tus faldas.



(enviado porAninha Terra)

sábado, 22 de janeiro de 2011

Teoria das Cores - Herberto Helder, conto...

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.


(do livro "Os Passos em Volta", Herberto Helder, ed. Assírio & Alvim)

domingo, 26 de dezembro de 2010

À Beleza - Miguel Torga

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Seda - Alessandro Baricco, Romance

Hervé Joncour é um francês comerciante de Seda, devido a uma praga dos bichos-da-seda no Oriente-Médio é obrigado a partir para o Japão para consegui-los através de contrabando - nesta época, meados de 1860, este comércio era proibido.

"[Hervé Joncour] Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Würtemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lado Bakail, que as pessoas do lugar chamavam: o último. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano, e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por dez dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão."

É entre esse pequeno roteiro, de ida e volta, repetido diversas vezes com pequenas variações de palavras, que o romance se embalsa e se repete; funciona quase como uma espécie de refrão que nós identificamos invariavelmente ao longo do texto e ao qual nos pautamos. É como se essa maneira de tecer a partitura da história também fizesse parte do modo com que Joncour percebe o mundo novo e entramos em suas viagens com o mesmo fascínio, estranheza, e uma espécie de inércia que penso ser responsável também pela leveza (quase existencialista?) do livro.

Tenho a impressão que, neste livro, Alessandro Baricco faz o inverso de "Oceano Mar" onde sua escrita é totalmente escorrida, quase onírica, livre, as passagens dissipam uma nas outras sem saber quando termina uma e começa outra. Aqui, o autor escreve com pulso marcado, seco, enxuto e rápido. O incrível é que mesmo assim ele não perde o lirismo, que talvez seja a sua característica mais forte. Como podemos ver nas imagens que Baricco cria através de Joncour, por exemplo, ao definir o "fim do mundo" como o "invísivel", ou ao revelar ideogramas japoneses em papéis de arroz que diz são como "cinzas de uma voz queimada" etc.

Para mim, de tudo o que li, este é um dos autores de nomes mais fortes para o mundo contemporâneo. Devido a sua capacidade de criação e resignificação simbólica e imagética. Reinventar o mundo e dar/manter um lirismo nas coisas que parece quase impossível hoje em dia – se pensarmos na forma com que tornamos tudo facilmente volátil. O deslocamento de figura, compreensão, sensação provocado dentro da gente, aqui, é incessante.


"- O que são?
- Um viveiro.
- Um viveiro?
- Sim.
- E para que serve?
Hervé Joncour mantinha os olhos fixos nos desenhos.
- Você o enche de pássaros, tantos quantos puder, e depois, um dia em que lhe acontece alguma coisa boa, você o escancara, e os vê sair voando."
página 74


Seda
Alessandro Baricco
Ed. Cia das Letras
121 páginas