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sábado, 16 de junho de 2012

Do Desejo, Hilda Hilst

egon schiele


III

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

"Ferida", Paulo Leminski, poema

         essa a vida que eu quero,
querida

         encostar na minha
a tua ferida





do livro La Vie en Close, P. Leminski

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Hoy ya ha pasado, Manuel Graña Etcheverry, poema

HOY YA HA PASADO

Ya va pasando el día. Ya los libros
no pueden. Ya la música no alcanza.
La evasión es inútil, solitario.
Ya tiene el espejo allí a tu frente:
mírate, solo, humeante el cigarrillo,
mira en el cuarto tu presencia sola.
No están sus manos ni sus ojos vienen,
ni su voz se te acerca, ni su beso,
ni se llega su amor para buscarte.
Has consumido sueños en la espera:
edificios de tenues armazones
que las horas gastaron poco a poco.
Y las sonoras ruinas de estupendos
coloquios del amor que imaginaste
han buscado su tumba en las paredes.
No te bastó el recuerdo: la querías
viviente y a un lado y en tus brazos.
Pero el día se va sin que ella venga.
Hoy no llegó la paz y tienen miedo.
No quieres en cristales retratarte
ni el agua del pasado te refresca.

Pero el día se va…cállalo, olvida.
Besa en el aire su mejilla ausente.
Hoy no llegó la paz. Hoy ya ha pasado.



----traduzindo----


HOJE JÁ PASSOU

Já o dia passa. Já os livros
não podem. Já a música não alcança.
A evasão é inútil, solitário.
Já tens o espelho a tua frente:
mira-te, sozinho, fumando o cigarro,
mira no quarto tua presença só.
Não estão suas mãos nem seus olhos vêm,
nem sua voz se aproxima, nem seu beijo,
nem chega seu amor para buscar-te.
Consumiste sonhos na espera:
edifícios de tenues quadros
que as horas gastaram pouco a pouco.
E ruínas sonoras de estupendos
colóquios de amor que imaginaste
têm buscado sua tumba nas paredes.
Não te bastou a lembrança: desejava-a
vivendo e perto e em teus braços.
Mas o dia se vai sem que ela venha.
Hoje a paz não veio e tens medo.
Não quer retratar-se em cristais
nem a água do passado te refresca.

Mas o dia se vai... cala-o, esqueça.
Beija no ar seu rosto ausente.
Hoje a paz não veio. Hoje já passou.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Apuntes de una risa triste, conto, Hernán Rivera Letelier

Apuntes de una risa triste

Mi risa no sabe de peces de colores. siempre han sido grises sus pocos peces, rigurosamentes grises. Jamás han desplegado lienzo de oreja a oreja mi torpe risa; apenas un estirar de hocico leporino en mitad de un sueño, apenas un rictus de ángel idiota cuando río solo; apenas - nadie se mueve a engaños - la mueca de la Tragedia vueltas patas arribas en mis retratos. Menos todavía sabe de carcajadas mi enferma risa, de esas que al estallar hacen aletear el alma en torno a la cara. las suyas_ de estallar alguna vez-, sonarían como de una boca llena de piezas de oro o insondable de peledas encías: tal y cual deben resonar en los sótanos del cielo de las vésanicas carcajadas de dios riéndose de si mismo.





















- -- - traduzindo


Apontamentos de um riso triste

Meu riso não conhece peixes coloridos. Seus poucos peixes sempre foram cinzas, rigorosamente cinzas. Jamais exibiu um lenço de orelha à orelha meu riso torpe; apenas um estirar de focinho leporino na metade de um sonho, apenas um ricto de anjo idiota quando rio sozinho; apenas - ninguém se move por enganos - a careta da Tragédia envolta com as patas em cima dos meus retratos. Muito menos gargalhas conhece o meu riso enfermo, dessas que ao explodir fazem vibrar a alma ao redor da cara. As suas - explodindo alguma vez - soariam como de uma boca cheia de peças de ouro ou insondável de gengivas nuas: tal qual devem ressoar nos sótãos do céu as gargalhadas insanas de deus rindo de si mesmo.


(do livro de contos "Donde mueren los valientes", Hernán Rivera Letelier, ed. punto de lectura)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Diário de Andrés Fava, Julio Cortázar

Às vezes esqueço como é importante (talvez uma palavra menos imponente, talvez 'surpreendente') reler um livro, ainda mais como Cortázar, e escritores comme ça que, deste jeito mesmo incisivos, podem nos atravessar de diversas (até opostas) maneiras a cada vez que são lidos. Tive que rebocar minha memória para reler "O Diário de Andrés Fava", que me parecia completamente estranho (novo). (E daí vem Heráclito com a história de que mudamos etc e tal, mas não é disso que estou falando, pelo menos acho que não só. Fala muito da força independente que o livro tem para te abraçar de tantos lados). ...

Cortázar escreveu este livro em 1950 e só veio a publicá-lo em 86. O seu objetivo original era agregá-lo ao romance "El examen" (publicado no Brasil como 'O exame final'), mas como o Diário de Andrés Fava demonstrava vida própria, Cortázar decidiu guardá-lo para uma outra publicação. O que para mim deve ter sido o mais coerente, apesar de não ter lido ainda El Examen, mas o que parece é que o livro é tão independente que se poderia arrancar as páginas e elas valeriam por si mesmas. São citações, fragmentos, lembranças, pequenos relatos, observações (e angústias literárias)...Enfim. Um livro que se possa recorrer sempre. E se mantém perto.


"Além disso, não se deve procurar o mesmo amigo dois dias seguidos - por isso tempos três ou quatro, e os revesamos e revesamos: a segunda visita provavelmente seria aborrecida. Alterando um pouquinho certo ditado italiano: L'amico è come il pesce: dopo tre giorni, puzza." (Amigo é como peixe: depois de três dias, fede.)

"Uma coisa é acariciar o teu cabelo, e outra é encontrá-lo na sopa".

"Ainda sobre o suposto "sofrimento" do escritor: se de fato tens de sofrer, que não seja por causa do que escreves, mas como o fazes"






Diário de Andrés Fava
Julio Cortázar
Ed. José Olympio
127 páginas

terça-feira, 8 de março de 2011

Ausencia, Jorge Luiz Borges, poema...

Habré de levantar la vasta vida
que aún ahora es tu espejo:
cada mañana habré de reconstruirla.
Desde que te alejaste,
cuántos lugares se han tornado vanos
y sin sentido, iguales
a luces en el día.
Tardes que fueron nicho de tu imagen,
músicas en que siempre me aguardabas,
palabras de aquel tiempo,
yo tendré que quebrarlas con mis manos.
¿En qué hondonada esconderé mi alma
para que no vea tu ausencia
que como un sol terrible, sin ocaso,
brilla definitiva y despiadada?
Tu ausencia me rodea
como la cuerda a la garganta,
el mar al que se hunde.



---- tradução em parceria com Aninha Terra -------


Ausência

Haverei de levantar a vasta vida
que ainda agora é teu espelho:
cada manhã haverei de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares tornaram-se vãos
e sem sentido, iguais
à luzes no dia.
Tardes que foram o nicho da tua imagem,
músicas com que sempre me aguardavas,
palavras daquele tempo,
eu terei que quebrá-las com minhas mãos.
Em que buraco esconderei minha alma
para que não veja tua ausência
que como um sol terrível, sem acaso,
brilha definitiva e despiedada?
Tua ausência me rodeia
como a corda na garganta,
o mar em que se afunda.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sobre heróis e tumbas - Ernesto Sabato, Romance

Buenos Aires, década de 50, com uma pluralidade narrativa imensa, Sabato inicia uma trilha (assustadora) para os porões da loucura, a qual parece ser o personagem principal desse livro. São várias vozes que pertencem ou rodeam de alguma forma a família Olmos, lotada de entes estranhos obsecados por mundos completamente insanos que vão sendo revelados no decorrer da obra. A entrada nestes mundos através das descrições de Sabato nos trás uma veracidade tal que é como se estivessemos dentro dos olhos de cada louco e começamos a questionar o que faz parte da realidade e o que não ou por que o mundo deles seria menos real do que o nosso. A fenomenologia caberia bem aqui. Pode-se concluir, conforme afirma um dos loucos mais conhecidos do centro manicomial Pinel do Rio de Janeiro que "As portas do hospício estão do avesso".


Não é um livro fácil, não só pelo número de páginas, mas pelo excesso de elementos históricos, personagens, vozes etc contidas no texto. Muitas vezes durante a leitura acabei pensando que Sabato poderia excluir umas 200 páginas e o livro seria o mesmo, mas é claro que esse parece um olhar pobre ou ingenuo demais. Talvez se fosse mais compacto do jeito que eu o imaginava, essa nossa expedição não chegasse tão fundo, no musgo do musgo do musgo como ficamos ao final. Mas é difícil, afinal, nunca é simples emaranhar-se tanto assim, senão no âmago das nossas condições, em mundos cheios de nós mesmos. - e de maneira tão bizarra ou tão cheio de sombras.

Os principais fios narrativos são Alejandra, jovem, que conforme Sabato já nasceu madura, com a velhice por dentro, torturada e caótica; Fernando, homem obsecado pela cegueira, passa sua vida fazendo um relatório sobre a Seita dos Cegos, que aliás preenche um dos 4 capítulos do livro; Martín, jovem apaixonado por Alejandra, enciumado, tímido, obsecado e ao mesmo tempo temeroso da família a qual ela pertence; e o general Juan Lavalle, que tem sua história recontada por flashes narrativos dentro e fora da boca dos personagens, herói da independencia argentina que lutou contra o tirano Rosas e teve que bater em retirada para a Bolívia um século antes de todo o cenário do Romance ser construído.

Sobre heróis e tumbas
Ernesto Sabato
Ed. Cia das Letra
623 páginas














Ernesto Sabato (Rojas, 1911) é um ensaista, escritor e artista plástico argentino. Sobre Heróis e Tumbas foi considerado o melhor romance Argentino do século XX

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Poço / Para uma Tumba sem Nome - Juan Carlos Onetti, Novelas

É preciso um certo fôlego. O mesmo - ou ao menos muito semelhante - com que buscamos para ler Faulkner ou Kafka. É como um ar quente, abafado. Há uma deliquescência na escrita de Onetti que dissolve uma história na outra, uma prosa na outra, e não nos permite ver com facilidade aonde termina o quê e aonde. É com fôlego que damos algumas braçadas e chegamos ao outro lado do rio - sei lá qual rio, porque até isso soa fosco, esbranquiçado. Mas por isso mesmo é grandioso. Cansativo e grandioso. E respiramos ao final com a vitória de ter acabado e a vitória de não ter chegado precisamente a lugar nenhum - e o que importa não chegar a lugar algum? (De qualquer jeito continuamos os mesmos? Ou só por isso continuamos os mesmos? E por que não continuar? São infinitas perguntas que não necessariamente precisam ser respondidas) É o mesmo desenlace que parecem tomar seus personagens, esse que nós, leitores, tomamos: lugar algum. E estamos bem com isso, mais, estamos satisfeitos. A escrita varia entre o néscio, o lúgrube, escuro, existencial, anelante, lírico, lírico demais.

Nas duas novelas reunidas neste livro, mesmo que em caminhos distintos, revela-se a atmosfera lúdica, ensandecida, ofegante de Onetti. Com exagerada capacidade imagética (porém fugida do realismo), lirismo, bom gosto, cuidado, mau gosto também, lirismo, desdobramento, para os adjetivos. (Lembrem, os adjetivos). Onírico demais.

Em "O Poço" (1939), Onetti conta a história de um homem de 40 anos que angustiado, sozinho e sem tabaco, em um quarto trancado e sujo, resolve escrever a história de sua vida. O narrador-escritor se alterna na exposição da lembrança de sonhos e trechos de acontecimentos vividos em pura assossiação livre. Parece-me às vezes que o sonho aparece como o contraponto, resposta à uma vida por hora fracassada, que não há muito para aproveitar, relatar. Mas por hora, ainda não sei o que de fato é sonho e o que é realidade e até onde se confunde essa fibra fina que Onetti constrói (ou desconstrói) entre os dois.

"Dizem que há diversas maneiras de mentir; mas a mais repugnante de todas é dizer a verdade, a verdade inteira, ocultando a alma dos fatos. Porque os fatos são sempre vazios, são recipientes que vão tomar a forma do sentimento que os preencha." (O narrador-personagem de O Poço, pg 37)


Em “Para uma tumba sem nome” (1959), a história de uma mulher, um homem, e um bode é desnovelada; tenta ser relatada de diversas formas, por diversos ângulos, para um médico que vai juntando seus cacos para compreendê-la e dá também a sua impressão, composição narrativa, sem nunca conseguir chegar à uma versão final. Mas o que importa saber da história de fato? É uma narrativa truncada, que não se encontra, com limites dissolvidos. Há a história dentro da história dentro da história. E por isso mesmo soa fascinante, e por isso mesmo o "lugar nenhum" como citei antes, uma dificuldade um pouco eletrizante: como sair desta coisa nebulosa? E por isso Faulkner, e por isso Kafka. Como descobrir quais os limites, se há limites, para quê limites?

"Não estou mandando que repare nisto ou naquilo; estou sugerindo, simplesmente. Quando lhe peço que repare em algo não o estou ajudando em nada a compreender a história; mas talvez essas sugestões sejam úteis para que se aproxime da minha compreensão da história, da minha história") (Jorge Malábia para o Médico em "Para uma Tumba sem Nome", pag 96)


O Poço / Para uma Tumba sem Nome
Juan Carlos Onetti
Editora Planeta Literário
168 páginas





Juan Carlos Onetti (1909 — 1994) foi um escritor uruguaio. Permaneceu muito tempo inédito, desconhecido (diria quase inóspito) no Brasil, tendo recentemente suas obras lançadas (em nosso português) em função de seu centenário de nascimento em 2009.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Trágico Versátil, Poesia

(de Ricardo Mendes, que em outros momentos também é meu pai)

Ah! Se as musas soubessem
quão volúvel é o coração dos poetas,
embora vermelho e pulsante como o dos outros homens
fraco e sensível ele é,
amante das vedetas
ferido o coração, cheio de setas,
nomes, lábios, seios, devaneios,
um dicionário sensorial de amores e receios

Ah! Se o peito de um poeta
pudesse ser aberto,
cicatrizes de ilusões apareceriam
raízes sem caules de futuros amores cresceriam
e o poeta morreria de vergonha
ao ter seu superego investigado
como um cego que se sinta desvendado
na escuridão dos próprios olhos
E é só o que basta, esse vazio,
pra que num ímpeto se esqueça
de escrever poesias
meta uma bala na cabeça
e como todo o bom poeta
morra ao raiar do dia


(do livro "Tatuagem", Ricardo Mendes, 86)

domingo, 4 de abril de 2010

Viceversa - Mario Benedetti, Poesia

no original:

Viceversa

Tengo miedo de verte
necesidad de verte
esperanza de verte
desazones de verte

tengo ganas de hallarte
preocupación de hallarte
certidumbre de hallarte
pobres dudas de hallarte

tengo urgencia de oírte
alegría de oírte
buena suerte de oírte
y temores de oírte

o sea
resumiendo
estoy jodido
y radiante
quizá más lo primero
que lo segundo
y también
viceversa.


Aqui tento uma tradução ingênua:

Vice-versa

Tenho medo de ver-te
necessidade de ver-te
esperança de ver-te
inquietudes de ver-te

tenho vontade de encontrar-te
preocupação de encontrar-te
segurança de encontrar-te
pobres dúvidas de encontrar-te

tenho urgência de ouvir-te
alegria de ouvir-te
boa sorte de ouvir-te
e temores de ouvir-te

ou seja
resumindo
estou fodido
e radiante
quiçá mais o primeiro
do que o segundo
e também
vice-versa

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Encorajamento - Guimarães Rosa, Poesia

Meu desejo corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora...


(do livro "Magma" - João Guimarães Rosa; Ed. Nova Fronteira)

domingo, 14 de março de 2010

, Viviane Mosé, Poesia

Sua ausência cabe em meus poros.
Sua ausência cabe em meus peitos.

Entre as pernas nos ouvidos e nos olhos sua ausência
Cabe em minha boca.

Tem um buraco entre meus peitos onde você cabe.
E não tem buraco entre meus peitos.
Quando sua ausência me cabe.

Sua ausência me presença em mim.
Presença em mim.
Presença


(do livro "pensamento châo" - viviane mosé)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Obsceno Abandono: Amor e Perda, Marilene Felinto, Novela

Marilene nesta novela abre o corte mais profundo e cavuca expondo todas as entranhas da personagem. Mergulha no chão chão chão fundo do abandono e dilacera tudo o que sente, é sangue, é sexo, é cortante, é doído e é infernal, terrível também. A personagem se abre toda em ódio, amor, abandono, brutalidade. Se entrega e se queixa de maneira completamente inteira - até assustadora. Dilacerar-se a partir do abandono do outro, da não correspondência, do absurdo de não tê-lo, da impotência, da injustiça, da... É disso que fala esta novela. É preciso abrir os olhos e esquecer-se dos preconceitos, clichês ou não, entender que os sentimentos são assim, feios, fundos, lindos, ridículos, absurdos, possessivos, egoístas até, aqui estão escancarados da forma mais crua e densa. Mergulhem-no, mergulhem-nos, mergulhem-se.


(escultura de camille claudel)
"Está machucando? - O doutor perguntou tão perto de mim que era erótico.

Tinha uma voz suave que me arrepiava.

- Se estiver doendo, levante a mão, está bem? Posso anestesiar, se você preferir.

"Doendo". Se ele soubesse o que é dor. Crateras e rombos e vazios e fisgadas de dores profundas era o que não me faltava, é o que não me falta.
O cuidado, a delicadeza, aquele fio de voz, tudo me dava vontade de chorar como uma menina. Por pouco eu não respondi:

- Anestesia, não. Eu vim aqui pra sentir dor física mesmo. Dessas de quando se abrem as crateras e se expõem os nervos inflamados dos dentes. Quero ver se, desse modo, me curo da outra, uma dor abstrata que estou sentindo não sei onde."
Obsceno Abandono, pág 58


Obsceno Abandono: Amor e Perda
Marilene Felinto
Ed Record
80 págs





Marilene Felinto (1957) é uma escritora, tradutora, cronista, feminista, brasileira, de Recife.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Gracias Por el Fuego, Mario Benedetti, Romance

Há algo na literatura uruguaia de tão doce e triste que não sei de fato explicar. Mas é sutil. O que leio parece a voz de um povo que foi violado, perdeu algo muito preciso (ou precioso?) dentro dos seus dias, um povo que foi ferido na sua ingenuidade mas que permaneceu inerte de alguma forma numa espécie de impotência, não sei se conformismo. Ao conhecer o uruguai só pude encontrar pessoas amáveis, de nenhum jeito histéricas, embora carregassem algum uníssono de tristeza. Na obra de Mario Benedetti isso não é diferente. Mesmo em seus livros mais políticos, parece ter uma voz tão próxima e tão intima do leitor que cheguei a me emocionar bastante durante os dois romances que li.

Gracias por el fuego, se passa no Uruguai e narra a história de Ramon Budiño que é confrontado com seus desejos, sua impotência em relação a si mesmo e à sociedade,(sua baixo-estima? falta de crença em si?) principios e ambições tortuosos não claramente definidos e o amor e ódio que mantém pelo seu pai, Edmundo Budiño - que aparece como um personagem magnata totalmente sem escrúpulos. A relação dos dois é a parte mais forte do romance, fazendo um paralelo com a opressão/dependência capitalista dos anos 60 no país, representado pelo pai, e a impotência de um povo, representado pelo filho, que está perdido, confuso e embora não aceite totalmente a expansão da corrupção em sua pátria, se omite. A falta de perspectiva de Ramón, seu eminente fracasso em relação à sua subjetividade, individualidade, desencanto consigo mesmo, o põem em um redemoinho tão grande que só consegue vislumbrar o assassinato de seu pai como a única saída e solução para si, para o país, para seu filho adolescente. Até chegar nesta conclusão e após, o enredo se constrói.

"Apresento-lhes Ramón Budiño, ao começar a jornada em que resolveu matar Edmundo Budiño, um crápula que provisória e casualmente é seu pai. Roga-se por não inquirir por circunstâncias antenuantes, porque não as há. Trata-se de um crime longamente ruminado. A única sorte é não acreditar em Deus. Assim há menos complicações. Apresento-lhes Ramón Budiño, vivissiccionista das relações com seu pai, insone fora de foco, covarde que joga sua última carta de valentia, nu com incipiente pança, iminente órfão por própria decisão e meditado rompante, apaixonado sem beijos e sem língua, pobre diabo inteligente e carrancudo, criminoso inesperado no entanto, estúpido com excesso de memória, criador da 'própria absolvição, pálido esquerdista sentado à direita, abastado possuidor de escrúpulos elétricos, curioso da própria morte e também da alheia, cansado de ser displiscente, pai desolado e sem norte, valoroso sexual, perpléxo incurável, eu." pág 121/122



Gracias Por el Fuego
Mario Benedetti
Editora L&M POCKET
266 páginas



(Leia sobre Benedetti nas postagens anteriores)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Por que não ler Paulo Coelho?

Ou "Por que ler Paulo Coelho?" Também poderia se chamar.

Neste início de ano ganhei um exemplar de um livro do Paulo Coelho de um amigo. Sem poder adiar mais o que eu jáa havia planejado antes - ler Paulo Coelho para tirar eu mesma minhas próprias conclusões sobre este autor que a crítica tanto esmaga - aventurei-me na aventura de mergulhar sobre suas páginas. O exemplar que li foi Brida. Sem querer repetir-me demais, segue parte do email que eu enviei ao tal amigo com as minhas sinceras impressões:

"Se gostei do livro de um modo geral? Não sei. De certo não é uma leitura que me desagrada, li facilmente e ficava angústiada nos momentos em que tinha que parar de ler. O Paulo Coelho sabiamente nos deixa com sede capítulo após capítulo. E por isso li tão rápido, praticamente o engoli. O livro fala de assuntos que tocam meu coração e que entendo bem. É uma linguagem (mistica? espitiual? vital? humana?) que me adoça, me gusta.

Porém de fato não é a literatura que gosto de ler. E nesse ponto talvez eu seja chata. Sinto que tanto a trama quanto a forma com que ele escreve são clichês e não encontro muito do refinamento e a complexidade que tanto gosto nos livros. A narrativa segue uma estrutura básica de tensão, climax, desfecho e catarse, e não inova muito neste ponto. A escrita se mantém com falas simples e usuais, quase esperadas. E na criação dos personagens também me falta, não que me soe simples - porque a simplicidade muitas vezes é uma virtude - talvez seja mais superficial, parece não se preocupar muito na construção das personagens e acaba por criar uma desarmonia (desproposital) às vezes entre o que a personagem fala, deseja e faz. É certo que não são personagens fúteis - não é disso que falo quando me refiro à superficialidade - elas fazem questionamentos profundos mas não se permitem perder-se e entrar nesses questionamentos e abrir a gama de leques e a complexidade que é própria deles - e o ser humano não é mesmo complexo?


enfim,

uma vez li que os livros do Paulo Coelho faziam tanto sucesso porque ao utilizar, por exemplo, frases como "quando você quer alguma coisa, todo Universo conspira para que você realize seu desejo" que determinam bem a maioria de seus livros, acabam por preencher o vazio da sociedade de massa que está afundada em desesperança, e perplexas sem entender o isolamento que se meteu o indivíduo. Porque não enxergam a origem (capitalista, ou seja lá qual) que gera aquilo tudo.

Ao ler o livro, não tenho como não concordar com esta afirmação. Embora ache que a crítica seja severa com o Paulo Coelho. Também acho que ele leva espiritualidade e abre um portal de questionamente de maneira simplificada às pessoas que não chegariam lá de outra forma. E de qualquer jeito, todos precisamos alimentar nossas esperanças e nossas almas - desde que não nos aliene."

Brida
Paulo Coelho
Editora Planeta
264 páginas


Paulo Coelho ((Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1947) é um escritor, de muitos Best Sellers, brasileiro.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Uma noite no bolero - Carlos Heitor Cony, Crônica

OS FESTIVAIS antigamente eram festejos dos outros. Havia a citação obrigatória: "Em seguida, o festejado autor...". Ora, se Maomé não vai à montanha que a montanha vá a Maomé, donde: se ninguém festeja os escritores, nada de mais que os próprios se festejem.

Os latinos tinham para isso uma frase amarga: "Asinus asinus fricat". Se os burros podem se coçar uns aos outros, a analogia é válida: que os inteligentes cocem os inteligentes.

Confraternização da Cultura Brasileira (Noite da). Palavras assim existem para essas horas. O gênio passeando pelos corredores empoeirados do Shopping Center, aferindo o próprio sucesso. A crítica recebeu muito bem o livro, o Adonias chamou-o de Faulkner e o Brito Broca de Flaubert.

Ninguém sabe o que está perdendo, mas ali está Flaubert dentro de Faulkner, e ambos dentro do sujeito magro e de paletó mal feito. Vem a bandeja dos salgadinhos e Faulkner se atrapalha com a azeitona que caiu do palito de Sartre (há Sartre também no Shopping Center).

Quem apanha a azeitona é o Dostoiévski do Piauí. Humildemente, com a insignificância de ovelha negra da classe, mastigo um magro pastel, sossegado e livre, perto do bar onde servem uísque. Aperto a mão de Sainte-Beuve e cumprimento obliquamente Henry Miller, que passa de braços dados com o Antonio Callado.

Pound me pergunta onde tem água mineral, eu aponto o fundo do bar, onde Balzac conta uma anedota envolvendo papagaio e mulher da vida. Saio do bar, evito Tolstói, que me deve R$ 500, espremo um lugarzinho entre Faulkner-Flaubert e empurro John dos Passos para conseguir um sanduíche. Abro o pão: tiraram o salame. Passa perto de mim o próprio Homero mastigando meu salame. Confraternização da cultura universal.

Armaram minha humilde tenda em frente à barraca do Graham Greene, o qual perambulava pelo Brasil como um delegado de um congresso pró-liberdade de não sei mais o quê. Não adiantou o poeta Walmir Ayala armar comício em frente à minha tenda: todo mundo ia para a barraca do autor do "Terceiro Homem".

Mas não havia terceiro, nem segundo, nem homem algum na barraca do Graham Greene. Pela minhas barbas passaram Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção e Antonio Carlos Villaça. Naqueles tempos, os três rezavam e liam pelo mesmo catecismo e cartilha. Procuravam o autor de "Ensaios Católicos" para uma missazinha no Mosteiro de São Bento ou uma palestra sobre a Eucaristia no Centro Dom Vital.

Procuraram, procuraram, esperaram, esperaram, até que desanimaram: Graham Greene não viria ao Festival. Começaram a empilhar os livros, as fãs se dispersavam e a santíssima trindade do Centro Dom Vital foi para casa.

Saí de lá quando as luzes se apagavam. Não havia jantado e de repente desemboquei na calçada do Bolero, dando sopa para um sanduíche com chope honesto. Do andar de cima vinha o som da orquestra, aquele pianista que parece o Orson Welles dando socos no piano sem marfim.

Subi para ver as caras, há muitos anos não penetrava naquela pastagem do pecado. No canto mais escuro da sala, silhueta enorme e meio curva, vi Graham Greene com uma loura a tiracolo. Greene nem tirara da lapela aquele laço com nome e endereço que os congressistas usam para chamar a atenção dos que não dão atenção a nada. A orquestra tocava "A Noite do meu Bem", mas Greene teimava em cantar Siboney. A loura ria e o escuro da sala acentuava a caverna de sua boca com maus dentes.

Desci correndo à procura de um telefone. Mas as redações estavam fechadas. Tentei telefonar para o Alceu, o Corção, o Villaça. Mas o único telefone que encontrei foi o do Corção, inútil por sinal, o professor desliga seu aparelho após o canto das "Completas" e só torna a ligá-lo após as "Matinas" do novo dia do Senhor que se lhe abre à frente.

Villaça devia estar dormindo, e nem o Pão de Açúcar em erupção o despertaria. Saí então em busca de testemunhas. No "Le Roind Point" encontrei Antonio Maria e Paulo Francis. Voltamos ao segundo andar do Bolero. Graham Greene já tinha saído. Mas o garçom confirmou a história: "O inglês deu uma boa gorjeta. Sim, sim, levou a loura".



(coluna retirada da página Ilustrada da Folha de SP do dia 4/12/09)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O mundo ideal e o real - Tostão, Coluna

Este um mundo real, muitas vezes violento, injusto, ganancioso e preconceituoso, e outro ideal, que sonhamos viver, embora façamos pouco para isso. A melhor maneira de fazer algo não é ser bonzinho no Natal nem praticar alguns atos generosos para reparar a culpa real e/ou imaginária. É, principalmente, ser, todos os dias, um bom cidadão. Não é fácil. São muitas as tentações.

Quanto maior a distância entre o mundo real e ideal, maior é o desamparo. É a mesma relação individual entre ego e ego ideal. ``Sou o que penso, mas penso ser tantas coisas`` (Fernando Pessoa).

Escuto, desde criança, que o esporte é o lugar ideal para as pessoas aprenderem e desenvolverem os valores éticos. Isso nunca foi verdade no esporte de competição e de alto nível. O gol, com a ajuda da mão, que classificou a França para a Copa é mais um de dezenas de exemplos. Nesses lances especiais e decisivos, em que não há dúvidas, o quarto árbitro, com a ajuda da TV, deveria anular o gol.

Na emoção de uma partida, os atletas, na busca por glória e dinheiro, pressionados para vencer, demonstram, em atos falhos ou conscientes, toda a desmedida ambição e toda a esperteza humana.

Um dos motivos relatados para o recente suicídio do goleiro Robert Enke, da Seleção Alemã, foi o medo que tinha do fracasso. Isso contribuiu para piorar sua crônica depressão. Perder é morrer.

No mundo ideal, os atletas entrariam em campo somente para jogar futebol, com alegria, e respeitariam companheiros, adversários, árbitros e auxiliares, além de tentar dar bons espetáculos.

No mundo real, os jogos, em todo o planeta, principalmente na América do Sul, estão cada dia mais tensos, tumultuados e violentos. Durante a semana, houve pancadaria em dois jogos no Brasil, um no Uruguai e outro na África.

Muitos treinadores e dirigentes, mesmo sem intenção, estimulam a violência com os discursos de ganhar a batalha, perder a guerra, jogar com muita pegada, além das ofensas aos árbitros.

O que houve com Obina e Maurício e também com Hugo e André Dias (estes não trocaram socos) já aconteceu várias vezes com outros jogadores. Os atletas não suportam a pressão de ter de vencer. Agridem antes de serem agredidos. Técnico adora também passar a mão na cabeça de jogador violento.

Se Obina e Maurício tivessem agredido os adversários, e o Palmeiras tivesse vencido, provavelmente os dois não seriam punidos pelo clube. Talvez, recebessem até elogios por suas bravuras.

No mundo ideal, a imprensa cobraria, com ênfase, mais qualidade técnica e menos violência. No real, parte da mídia incorporou o discurso dos técnicos de que o importante é o resultado e que, no futebol moderno e de muita marcação, não há mais lugar para futebol bonito e com poucas faltas.

No meu mundo ideal, queria assistir aos jogos somente com o olhar de um poeta e de um apreciador das coisas belas de um espetáculo. No meu mundo real, preciso ser também pragmático e um analista técnico e tático. Tento unir os dois mundos. Nem sempre consigo. Os dois se estranham.


(coluna retirada da página de Esportes da Folha De S.P do dia 22/11/09)

Tostão é um ex-jogador de futebol brasileiro, médico e colunista da folha da página de Esportes.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cambalache - Mario Benedetti, Conto

Aquele time de futebol, rio-platense (não darei mais detalhes, pois o que interessa aqui é a anedota, não o nome dos atores), chegou à Europa apenas 24 horas antes da sua primeira partida contra uma das mais prestigiosas equipes do Velho Continente (aqui também não darei maiores detalhes). Mal tiveram tempo para um breve treino, num estádio mais ou menos secundário, com um gramado desastroso.

Quando por fim entraram no verdadeiro campo (ou field, como preferem alguns puristas), ficaram estupefatos com as colossais dimensões do estádio, com as arquibancadas lotadas e vociferantes, e também com a atmosfera gélida de um janeiro implacável.

Como de praxe, as duas equipes se alinharam para ouvir e cantar os hinos. Primeiro, logicamente, o dos locais, entoado pelo público e pelos jogadores, seguido de uma intensa ovação.

Depois foi a vez do nosso. A gravação era horrível, com uma desafinação realmente olímpica. Nem todos os jogadores sabiam a letra inteira, mas acompanharam pelo menos a estrofe mais conhecida. Um dos atletas, casualmente um atacante, embora se lembrasse do hino, resolveu cantar no lugar dele o tango "Cambalache": "Que el mundo fue y será una porquería, ya no lo sé, en el quinientos seis, y en dos mil también." Só na tribuna de honra, alguns poucos aplaudiram por obrigação.

Finda essa parte da cerimônia e antes do ponta-pé inicial, que escreve a cargo de um encarquilhado ator do cinema mudo, os jogadores rio-platenses rodearam o atacante rebelde e o repreenderam duranmente por cantar um tango em vez do hino. Entre outros amáveis epítetos, els o chamaram de traídor, apátrida, sabotador e cretino.

O incidente teve inesperadas repercussões no jogo. No início, os demais jogadores evitaram passar a bola para o sabotador, de maneira que este, para tomá-la, era obrigado a recuar quase até a linha defensiva e depois avançar muito, esquivando-se dos robustos adversários e passando-a em seguida (porque não era egoísta) a quem estivesse melhor colocado para chutar a gol.

Os europeus jogaram melhor, mas faltavam poucos minutos para o apito final e nenhum dos dois times conseguira vazar a meta adversária. E assim foi até os 43 minutos do segundo tempo. Foi então que o apátrida tomou a bola num rebote e empreendeu sua desafiante disparada rumo ao gol adversário. Penetrou na grande área e, já que até então seus companheiros haviam desperdiçado as boas chances que lhes dera, driblou dois zagueiros com três gingadas geniais e, quando o goleiro saiu espavorido tentando cobrir o ângulo, o cretino ameaçou chutar com a direita mas chutou com a esquerda, a bola num inalcançável canto da trave. Foi o gol da vitória.

A segunda partida aconteceu em outra cidade (não entro em detalhes), num estádio igualmente imponente e com as arquibancadas lotadas. Lá também chegou a hora dos hinos. Primeiro o do time da casa e depois o dos visitantes. Embora a trilha sonora seguisse por outro lado, os 18 jogadores, perfeitamnete alinhados e com a mão direita sobre o peito, cantaram o tango "Cambalache", cuja letra, esta sim, todos sabiam de cor.

Apesar da vitória também nessa partida (não me lembro do resultado exato), os indignados dirigentes resolveram cancelar a excursão européia e multar todos os jogadores, sem exceção, acusando-os de traidores, apátridas, sabotadores e cretinos.


(Conto retirado do livro "Correios do Tempo", Mario Benedetti, Editora Objetiva)


Nota: Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009) foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio.