É preciso um certo fôlego. O mesmo - ou ao menos muito semelhante - com que buscamos para ler Faulkner ou Kafka. É como um ar quente, abafado. Há uma deliquescência na escrita de Onetti que dissolve uma história na outra, uma prosa na outra, e não nos permite ver com facilidade aonde termina o quê e aonde. É com fôlego que damos algumas braçadas e chegamos ao outro lado do rio - sei lá qual rio, porque até isso soa fosco, esbranquiçado. Mas por isso mesmo é grandioso. Cansativo e grandioso. E respiramos ao final com a vitória de ter acabado e a vitória de não ter chegado precisamente a lugar nenhum - e o que importa não chegar a lugar algum? (De qualquer jeito continuamos os mesmos? Ou só por isso continuamos os mesmos? E por que não continuar? São infinitas perguntas que não necessariamente precisam ser respondidas) É o mesmo desenlace que parecem tomar seus personagens, esse que nós, leitores, tomamos: lugar algum. E estamos bem com isso, mais, estamos satisfeitos. A escrita varia entre o néscio, o lúgrube, escuro, existencial, anelante, lírico, lírico demais.
Nas duas novelas reunidas neste livro, mesmo que em caminhos distintos, revela-se a atmosfera lúdica, ensandecida, ofegante de Onetti. Com exagerada capacidade imagética (porém fugida do realismo), lirismo, bom gosto, cuidado, mau gosto também, lirismo, desdobramento, para os adjetivos. (Lembrem, os adjetivos). Onírico demais.
Em "O Poço" (1939), Onetti conta a história de um homem de 40 anos que angustiado, sozinho e sem tabaco, em um quarto trancado e sujo, resolve escrever a história de sua vida. O narrador-escritor se alterna na exposição da lembrança de sonhos e trechos de acontecimentos vividos em pura assossiação livre. Parece-me às vezes que o sonho aparece como o contraponto, resposta à uma vida por hora fracassada, que não há muito para aproveitar, relatar. Mas por hora, ainda não sei o que de fato é sonho e o que é realidade e até onde se confunde essa fibra fina que Onetti constrói (ou desconstrói) entre os dois.
"Dizem que há diversas maneiras de mentir; mas a mais repugnante de todas é dizer a verdade, a verdade inteira, ocultando a alma dos fatos. Porque os fatos são sempre vazios, são recipientes que vão tomar a forma do sentimento que os preencha." (O narrador-personagem de O Poço, pg 37)
Em “Para uma tumba sem nome” (1959), a história de uma mulher, um homem, e um bode é desnovelada; tenta ser relatada de diversas formas, por diversos ângulos, para um médico que vai juntando seus cacos para compreendê-la e dá também a sua impressão, composição narrativa, sem nunca conseguir chegar à uma versão final. Mas o que importa saber da história de fato? É uma narrativa truncada, que não se encontra, com limites dissolvidos. Há a história dentro da história dentro da história. E por isso mesmo soa fascinante, e por isso mesmo o "lugar nenhum" como citei antes, uma dificuldade um pouco eletrizante: como sair desta coisa nebulosa? E por isso Faulkner, e por isso Kafka. Como descobrir quais os limites, se há limites, para quê limites?
"Não estou mandando que repare nisto ou naquilo; estou sugerindo, simplesmente. Quando lhe peço que repare em algo não o estou ajudando em nada a compreender a história; mas talvez essas sugestões sejam úteis para que se aproxime da minha compreensão da história, da minha história") (Jorge Malábia para o Médico em "Para uma Tumba sem Nome", pag 96)
O Poço / Para uma Tumba sem Nome
Juan Carlos Onetti
Editora Planeta Literário
168 páginas
Juan Carlos Onetti (1909 — 1994) foi um escritor uruguaio. Permaneceu muito tempo inédito, desconhecido (diria quase inóspito) no Brasil, tendo recentemente suas obras lançadas (em nosso português) em função de seu centenário de nascimento em 2009.
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