mergulhem-se

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Obsceno Abandono: Amor e Perda, Marilene Felinto, Novela

Marilene nesta novela abre o corte mais profundo e cavuca expondo todas as entranhas da personagem. Mergulha no chão chão chão fundo do abandono e dilacera tudo o que sente, é sangue, é sexo, é cortante, é doído e é infernal, terrível também. A personagem se abre toda em ódio, amor, abandono, brutalidade. Se entrega e se queixa de maneira completamente inteira - até assustadora. Dilacerar-se a partir do abandono do outro, da não correspondência, do absurdo de não tê-lo, da impotência, da injustiça, da... É disso que fala esta novela. É preciso abrir os olhos e esquecer-se dos preconceitos, clichês ou não, entender que os sentimentos são assim, feios, fundos, lindos, ridículos, absurdos, possessivos, egoístas até, aqui estão escancarados da forma mais crua e densa. Mergulhem-no, mergulhem-nos, mergulhem-se.


(escultura de camille claudel)
"Está machucando? - O doutor perguntou tão perto de mim que era erótico.

Tinha uma voz suave que me arrepiava.

- Se estiver doendo, levante a mão, está bem? Posso anestesiar, se você preferir.

"Doendo". Se ele soubesse o que é dor. Crateras e rombos e vazios e fisgadas de dores profundas era o que não me faltava, é o que não me falta.
O cuidado, a delicadeza, aquele fio de voz, tudo me dava vontade de chorar como uma menina. Por pouco eu não respondi:

- Anestesia, não. Eu vim aqui pra sentir dor física mesmo. Dessas de quando se abrem as crateras e se expõem os nervos inflamados dos dentes. Quero ver se, desse modo, me curo da outra, uma dor abstrata que estou sentindo não sei onde."
Obsceno Abandono, pág 58


Obsceno Abandono: Amor e Perda
Marilene Felinto
Ed Record
80 págs





Marilene Felinto (1957) é uma escritora, tradutora, cronista, feminista, brasileira, de Recife.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O Mundo do Sexo, Henry Miller, Ensaio

Há em muito a discussão se a escrita de Henry Miller é literatura ou pornografia? Em o mundo do sexo não poderei enxergar, mais que um literato (erótico ou não, que seja, isso é de mínima importância) um grande defensor da liberdade. Numa mistura de biografia e ficção (como na maioria de suas obras) o autor faz um ensaio valioso sobre liberdade, amor, sexo, arte. Miller vê o sexo como ato de libertação pessoal, auto-expressão, assim como qualquer outro ato da vida que se permita evadir-se das repressões morais da sociedade, que vai contra a felicidade do homem, como diz. Mas não falamos aqui do sexo vazio, falamos do sexo da entrega, do amor, da unção, da vida pura, inteira.

Fico pensando se caso Henry Miller entrou em contato com as obras de Wilhelm Reich (de sua mesma época). Teria uma surpresa ao saber que suas intuições referentes ao sexo, não só encontram apoio teórico como cientifico. Muitas vezes o próprio Miller me lembra Reich falando, também por seu otimismo próprio dos dois autores, cada um a sua maneira, que vislumbram ainda um mundo em que o homem possa ser-se com facilidade, entregar-se a si mesmo e só assim: feliz. E quando diz neste mesmo livro "Quando as coisas estão se esfacelando, o ato mais intencional talvez seja sentar-se e ficar quieto. O indivíduo que consegue perceber e expressar a verdade que existe dentro de si pode ser considerado aquele que realisou um ato mais potente do que a destruição de um império", faz-me lembrar também o Freud bem jovem que escreveu em 'O Mal-estar da Civilização' "dizemos a nós mesmos que qualquer um que tenha conseguido se preparar para a verdade sobre si próprio está permanentemente protegido contra o perigo da imoralidade, mesmo que o seu padrão de moralidade possa diferir em algum aspecto daquele que é costumeiro na sociedade".

Com certeza, O Mundo do Sexo aparece de forma clara, simples, sucinta e muito mais madura do que em outras obras suas como um grito de liberdade. Para quem nunca leu Henry Miller é um bom e fácil começo.

"Por que somos tão cheios de restrições? Por que não nos entregamos em todas as direções? Será medo de perder a nós mesmos? Até que nor percamos, não pode haver esperança de nos encontrarmos. Somos do mundo e para entrar plenamente no mundo precisamos primeiro nos perder nele. O caminho do céu nos leva através do inferno, é o que se diz. O caminho que tomamos não tem importância, contanto que deixemos de percorrê-lo com cautela." O Mundo do Sexo, pág 83



O Mundo do Sexo
Henry Miller
José Olympio
110 págs.



Henry Miller (1891-1980) foi um escritor norte-americano, caracterizado pelo teor autobiografico em suas obras e também erótico.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Gracias Por el Fuego, Mario Benedetti, Romance

Há algo na literatura uruguaia de tão doce e triste que não sei de fato explicar. Mas é sutil. O que leio parece a voz de um povo que foi violado, perdeu algo muito preciso (ou precioso?) dentro dos seus dias, um povo que foi ferido na sua ingenuidade mas que permaneceu inerte de alguma forma numa espécie de impotência, não sei se conformismo. Ao conhecer o uruguai só pude encontrar pessoas amáveis, de nenhum jeito histéricas, embora carregassem algum uníssono de tristeza. Na obra de Mario Benedetti isso não é diferente. Mesmo em seus livros mais políticos, parece ter uma voz tão próxima e tão intima do leitor que cheguei a me emocionar bastante durante os dois romances que li.

Gracias por el fuego, se passa no Uruguai e narra a história de Ramon Budiño que é confrontado com seus desejos, sua impotência em relação a si mesmo e à sociedade,(sua baixo-estima? falta de crença em si?) principios e ambições tortuosos não claramente definidos e o amor e ódio que mantém pelo seu pai, Edmundo Budiño - que aparece como um personagem magnata totalmente sem escrúpulos. A relação dos dois é a parte mais forte do romance, fazendo um paralelo com a opressão/dependência capitalista dos anos 60 no país, representado pelo pai, e a impotência de um povo, representado pelo filho, que está perdido, confuso e embora não aceite totalmente a expansão da corrupção em sua pátria, se omite. A falta de perspectiva de Ramón, seu eminente fracasso em relação à sua subjetividade, individualidade, desencanto consigo mesmo, o põem em um redemoinho tão grande que só consegue vislumbrar o assassinato de seu pai como a única saída e solução para si, para o país, para seu filho adolescente. Até chegar nesta conclusão e após, o enredo se constrói.

"Apresento-lhes Ramón Budiño, ao começar a jornada em que resolveu matar Edmundo Budiño, um crápula que provisória e casualmente é seu pai. Roga-se por não inquirir por circunstâncias antenuantes, porque não as há. Trata-se de um crime longamente ruminado. A única sorte é não acreditar em Deus. Assim há menos complicações. Apresento-lhes Ramón Budiño, vivissiccionista das relações com seu pai, insone fora de foco, covarde que joga sua última carta de valentia, nu com incipiente pança, iminente órfão por própria decisão e meditado rompante, apaixonado sem beijos e sem língua, pobre diabo inteligente e carrancudo, criminoso inesperado no entanto, estúpido com excesso de memória, criador da 'própria absolvição, pálido esquerdista sentado à direita, abastado possuidor de escrúpulos elétricos, curioso da própria morte e também da alheia, cansado de ser displiscente, pai desolado e sem norte, valoroso sexual, perpléxo incurável, eu." pág 121/122



Gracias Por el Fuego
Mario Benedetti
Editora L&M POCKET
266 páginas



(Leia sobre Benedetti nas postagens anteriores)