mergulhem-se

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Jazz, Ângela F. Marques

voltei a ouvir jazz com a fúria dos vinte anos
a loucura dos vinte e cinco
e a lucidez dos trinta:
ávida e serena.

Porto, 1988




 ouço aqui jazz(em)
o corpo e as palavras
vazias com o tempo
escorregadio por entre
os dedos sequiosos
de alguma verdura
perdida pelos cinquenta.

irónica idade tranquilamente
debruçada sobre
a morte.


Porto, 2012
para ler mais Ângela F. Marques

domingo, 8 de abril de 2012

Um não acabar mais, Wistawa Szymborska, poema

Sou quem sou.
Um acaso inconcebível
como todos os acasos.

Outros antepassados
poderiam afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
sairia voando,
de debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.

No guarda-roupa da Natureza
há trajes de sobra:
o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um assenta de imediato que nem uma luva
e usa-se obedientemente
até se gastar por completo.

Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém
muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para dar a pele,
para a mesa festiva,
ou algo que nadasse sob a lente.

Uma árvore presa à terra,
da qual o fogo se aproximasse.

Um mero cisco esmagado
pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.

Um indivíduo nascido sob a estrela ruim
que para outros seria boa.

E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?

Se não tivesse nascido
na tribo certa
e todos os caminhos se me fechassem?

Até agora, a sorte
mostrou-se me favorável.

Poderia não ter-me sido nada
a recordação de bons instantes.

Poderia ter-me sido negada
a tendência pata comparar.

Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração
quer dizer - alguém completamente diferente.




do livro de poemas "Instante", Wistawa Szymborska
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves
Editora Relógio D'Água