mergulhem-se

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O mundo ideal e o real - Tostão, Coluna

Este um mundo real, muitas vezes violento, injusto, ganancioso e preconceituoso, e outro ideal, que sonhamos viver, embora façamos pouco para isso. A melhor maneira de fazer algo não é ser bonzinho no Natal nem praticar alguns atos generosos para reparar a culpa real e/ou imaginária. É, principalmente, ser, todos os dias, um bom cidadão. Não é fácil. São muitas as tentações.

Quanto maior a distância entre o mundo real e ideal, maior é o desamparo. É a mesma relação individual entre ego e ego ideal. ``Sou o que penso, mas penso ser tantas coisas`` (Fernando Pessoa).

Escuto, desde criança, que o esporte é o lugar ideal para as pessoas aprenderem e desenvolverem os valores éticos. Isso nunca foi verdade no esporte de competição e de alto nível. O gol, com a ajuda da mão, que classificou a França para a Copa é mais um de dezenas de exemplos. Nesses lances especiais e decisivos, em que não há dúvidas, o quarto árbitro, com a ajuda da TV, deveria anular o gol.

Na emoção de uma partida, os atletas, na busca por glória e dinheiro, pressionados para vencer, demonstram, em atos falhos ou conscientes, toda a desmedida ambição e toda a esperteza humana.

Um dos motivos relatados para o recente suicídio do goleiro Robert Enke, da Seleção Alemã, foi o medo que tinha do fracasso. Isso contribuiu para piorar sua crônica depressão. Perder é morrer.

No mundo ideal, os atletas entrariam em campo somente para jogar futebol, com alegria, e respeitariam companheiros, adversários, árbitros e auxiliares, além de tentar dar bons espetáculos.

No mundo real, os jogos, em todo o planeta, principalmente na América do Sul, estão cada dia mais tensos, tumultuados e violentos. Durante a semana, houve pancadaria em dois jogos no Brasil, um no Uruguai e outro na África.

Muitos treinadores e dirigentes, mesmo sem intenção, estimulam a violência com os discursos de ganhar a batalha, perder a guerra, jogar com muita pegada, além das ofensas aos árbitros.

O que houve com Obina e Maurício e também com Hugo e André Dias (estes não trocaram socos) já aconteceu várias vezes com outros jogadores. Os atletas não suportam a pressão de ter de vencer. Agridem antes de serem agredidos. Técnico adora também passar a mão na cabeça de jogador violento.

Se Obina e Maurício tivessem agredido os adversários, e o Palmeiras tivesse vencido, provavelmente os dois não seriam punidos pelo clube. Talvez, recebessem até elogios por suas bravuras.

No mundo ideal, a imprensa cobraria, com ênfase, mais qualidade técnica e menos violência. No real, parte da mídia incorporou o discurso dos técnicos de que o importante é o resultado e que, no futebol moderno e de muita marcação, não há mais lugar para futebol bonito e com poucas faltas.

No meu mundo ideal, queria assistir aos jogos somente com o olhar de um poeta e de um apreciador das coisas belas de um espetáculo. No meu mundo real, preciso ser também pragmático e um analista técnico e tático. Tento unir os dois mundos. Nem sempre consigo. Os dois se estranham.


(coluna retirada da página de Esportes da Folha De S.P do dia 22/11/09)

Tostão é um ex-jogador de futebol brasileiro, médico e colunista da folha da página de Esportes.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cambalache - Mario Benedetti, Conto

Aquele time de futebol, rio-platense (não darei mais detalhes, pois o que interessa aqui é a anedota, não o nome dos atores), chegou à Europa apenas 24 horas antes da sua primeira partida contra uma das mais prestigiosas equipes do Velho Continente (aqui também não darei maiores detalhes). Mal tiveram tempo para um breve treino, num estádio mais ou menos secundário, com um gramado desastroso.

Quando por fim entraram no verdadeiro campo (ou field, como preferem alguns puristas), ficaram estupefatos com as colossais dimensões do estádio, com as arquibancadas lotadas e vociferantes, e também com a atmosfera gélida de um janeiro implacável.

Como de praxe, as duas equipes se alinharam para ouvir e cantar os hinos. Primeiro, logicamente, o dos locais, entoado pelo público e pelos jogadores, seguido de uma intensa ovação.

Depois foi a vez do nosso. A gravação era horrível, com uma desafinação realmente olímpica. Nem todos os jogadores sabiam a letra inteira, mas acompanharam pelo menos a estrofe mais conhecida. Um dos atletas, casualmente um atacante, embora se lembrasse do hino, resolveu cantar no lugar dele o tango "Cambalache": "Que el mundo fue y será una porquería, ya no lo sé, en el quinientos seis, y en dos mil también." Só na tribuna de honra, alguns poucos aplaudiram por obrigação.

Finda essa parte da cerimônia e antes do ponta-pé inicial, que escreve a cargo de um encarquilhado ator do cinema mudo, os jogadores rio-platenses rodearam o atacante rebelde e o repreenderam duranmente por cantar um tango em vez do hino. Entre outros amáveis epítetos, els o chamaram de traídor, apátrida, sabotador e cretino.

O incidente teve inesperadas repercussões no jogo. No início, os demais jogadores evitaram passar a bola para o sabotador, de maneira que este, para tomá-la, era obrigado a recuar quase até a linha defensiva e depois avançar muito, esquivando-se dos robustos adversários e passando-a em seguida (porque não era egoísta) a quem estivesse melhor colocado para chutar a gol.

Os europeus jogaram melhor, mas faltavam poucos minutos para o apito final e nenhum dos dois times conseguira vazar a meta adversária. E assim foi até os 43 minutos do segundo tempo. Foi então que o apátrida tomou a bola num rebote e empreendeu sua desafiante disparada rumo ao gol adversário. Penetrou na grande área e, já que até então seus companheiros haviam desperdiçado as boas chances que lhes dera, driblou dois zagueiros com três gingadas geniais e, quando o goleiro saiu espavorido tentando cobrir o ângulo, o cretino ameaçou chutar com a direita mas chutou com a esquerda, a bola num inalcançável canto da trave. Foi o gol da vitória.

A segunda partida aconteceu em outra cidade (não entro em detalhes), num estádio igualmente imponente e com as arquibancadas lotadas. Lá também chegou a hora dos hinos. Primeiro o do time da casa e depois o dos visitantes. Embora a trilha sonora seguisse por outro lado, os 18 jogadores, perfeitamnete alinhados e com a mão direita sobre o peito, cantaram o tango "Cambalache", cuja letra, esta sim, todos sabiam de cor.

Apesar da vitória também nessa partida (não me lembro do resultado exato), os indignados dirigentes resolveram cancelar a excursão européia e multar todos os jogadores, sem exceção, acusando-os de traidores, apátridas, sabotadores e cretinos.


(Conto retirado do livro "Correios do Tempo", Mario Benedetti, Editora Objetiva)


Nota: Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009) foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio.