mergulhem-se

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Quando já não era mais necessário - Marina Colasanti, Conto

"Beije-me", pedia ela no amor, quantas vezes aos prantos, a boca entreaberta, sentindo a língua inchar entre dentes, de inútil desejo.

E ele, por repulsa secreta sempre profundamente negada, abstinha-se de satisfazer seu pedido, roçando apenas vagamente os lábios no pescoço e o rosto. Nem se perdia em carícias, ou se ocupava em despir-lhe o corpo, logo penetrando, mais seguro no túnel das coxas do que no possível desabrigo da pálida pele possuída.

Com os anos, ela deixou de pedir. Mas não tendo deixado de desejar, decidiu afinal abandoná-lo, e à casa, sem olhar para trás, não lhe fosse demais a visão de tanto sofrimento.

Mão na maçaneta, hesitou porém. Toda a sua vida passada parecia estar naquela sala, chamando-a para um último olhar. E, lentamente, voltou a cabeça.

Sem grito ou suspiro, a começar pelos cabelos, transformou-se numa estátua de sal. Vendo-a tão inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada como se translúcida, ele jogou-se pela primeira vez a seus pés.

E com excitada devoção, começou a lembê-la.

(extraído de Contos de amor rasgados, Marina Colasanti, Ed. Record)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Penso linhos e ungüentos - Hilda Hilst

Penso linhos e ungüentos
para o coração machucado de Tempo.
Penso bilhas e pátios
Pela comoção de contemplá-los.
(E de te ver ali
À luz da geometria de teus atos)
Penso-te
Pensando-me em agonia. E não estou.
Estou apenas densa
Recolhendo aroma, passo
O refulgente de ti que me restou.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Conto de Fadas - Robert Desnos

Era uma vez e muitas outras
Um homem que amava uma mulher
Era uma vez e muitas outras
Uma mulher que amava um homem
Era uma vez e muitas outras
Uma mulher e um homem
Que não amavam aquele e aquela que os amava.

Era uma vez somente
Uma só vez talvez
Uma mulher e um homem que se amavam.

domingo, 3 de outubro de 2010

Confissões de Uma Máscara - Yukio Mishima, Romance

Confissões de Uma Máscara conta a infância e juventude de Kochan, garoto que vive no contexto da Segunda Guerra Mundial no Japão.

Mishima lança uma narrativa em primeira pessoa que mergulha numa amálgama de conflitos interiores e contínua busca do personagem pelo seu verdadeiro "eu". O título do livro faz alusão já a este conflito enquanto Kochan às vezes confessa vestir propositalmente a "máscara social" escondendo seus anseios mais íntimos e em outras fica realmente confuso sobre o que faz parte verdadeira de si e o que é imposição de sua própria cabeça. Há uma descoberta intensa da sexualidade e tentativas de adequação do que seria a "normalidade" - termo que Mishima usa várias vezes durante o livro - que se confundem constantemente com os impulsos e fantasias reais de Kochan. Dentro de suas primeiras descobertas está Omi, um colega repetente da escola, por quem Kochan invariavelmente se excita. Os embates dentro de si rodeiam sempre a sua dificuldade de conciliar o amor e desejo sexual e um fetiche constante em relação a morte que o contexto de entreguerra só alimenta e prolifera. A busca intensa para definir o amor ocorre enquanto Kochan se pergunta se seria possível amar desprovido do impulso sexual - como o amor que pensa sentir por Sonoko - ou se esta espécie de amor seria apenas uma farsa imposta por si mesmo?

O Romance é escrito de forma muito poética e às vezes pode parecer até ingênuo pela sinceridade com que os sentimentos e conflitos são revelados. Li alguns artigos que esta história contém muitos dados auto-biográficos de Mishima, desde dados idênticos da infância até a relação com a sua homossexualidade, os fetiches mórbidos e uma paixão por samurais - representantes de um Japão tradicional.


"Visto sob essa luz, meu ciúme - ciúme violento o suficiente para me fazer dizer a mim mesmo que havia renunciado ao meu amor - era ainda mais amor" pág 62

"A auto-ilusão era agora meu último raio de esperança. Uma pessoa que tenha sido seriamente ferida não exige que os curativos de emergência que lhe salvam a vida estejam limpos. Detive meu sangramento com as ataduras da auto-ilusão, com que pelo menos estava familiarizado, e não pensei em nada mais além de correr para o hospital" pág 144

Confissões de Uma Máscara
Yukio Mishima
Circulação do Livro
184 págs

(Esta é uma edição antiga, mas é possível achar uma edição recente da Cia das Letras)



Yukio Mishima é o pseudonimo de Kimitake Hiraoka, um dos escritores mais conhecidos do Japão; se matou - cometendo seppuku, um ritual em que os samurais cortam o próprio ventre para mostrar a pureza de seu carater - após uma tentativa falida de discursar para os soldados do quartel japonês tentando convencê-los de que desistissem da constituição e voltassem às tradições imperiais.