Aquele time de futebol, rio-platense (não darei mais detalhes, pois o que interessa aqui é a anedota, não o nome dos atores), chegou à Europa apenas 24 horas antes da sua primeira partida contra uma das mais prestigiosas equipes do Velho Continente (aqui também não darei maiores detalhes). Mal tiveram tempo para um breve treino, num estádio mais ou menos secundário, com um gramado desastroso.
Quando por fim entraram no verdadeiro campo (ou field, como preferem alguns puristas), ficaram estupefatos com as colossais dimensões do estádio, com as arquibancadas lotadas e vociferantes, e também com a atmosfera gélida de um janeiro implacável.
Como de praxe, as duas equipes se alinharam para ouvir e cantar os hinos. Primeiro, logicamente, o dos locais, entoado pelo público e pelos jogadores, seguido de uma intensa ovação.
Depois foi a vez do nosso. A gravação era horrível, com uma desafinação realmente olímpica. Nem todos os jogadores sabiam a letra inteira, mas acompanharam pelo menos a estrofe mais conhecida. Um dos atletas, casualmente um atacante, embora se lembrasse do hino, resolveu cantar no lugar dele o tango "Cambalache": "Que el mundo fue y será una porquería, ya no lo sé, en el quinientos seis, y en dos mil también." Só na tribuna de honra, alguns poucos aplaudiram por obrigação.
Finda essa parte da cerimônia e antes do ponta-pé inicial, que escreve a cargo de um encarquilhado ator do cinema mudo, os jogadores rio-platenses rodearam o atacante rebelde e o repreenderam duranmente por cantar um tango em vez do hino. Entre outros amáveis epítetos, els o chamaram de traídor, apátrida, sabotador e cretino.
O incidente teve inesperadas repercussões no jogo. No início, os demais jogadores evitaram passar a bola para o sabotador, de maneira que este, para tomá-la, era obrigado a recuar quase até a linha defensiva e depois avançar muito, esquivando-se dos robustos adversários e passando-a em seguida (porque não era egoísta) a quem estivesse melhor colocado para chutar a gol.
Os europeus jogaram melhor, mas faltavam poucos minutos para o apito final e nenhum dos dois times conseguira vazar a meta adversária. E assim foi até os 43 minutos do segundo tempo. Foi então que o apátrida tomou a bola num rebote e empreendeu sua desafiante disparada rumo ao gol adversário. Penetrou na grande área e, já que até então seus companheiros haviam desperdiçado as boas chances que lhes dera, driblou dois zagueiros com três gingadas geniais e, quando o goleiro saiu espavorido tentando cobrir o ângulo, o cretino ameaçou chutar com a direita mas chutou com a esquerda, a bola num inalcançável canto da trave. Foi o gol da vitória.
A segunda partida aconteceu em outra cidade (não entro em detalhes), num estádio igualmente imponente e com as arquibancadas lotadas. Lá também chegou a hora dos hinos. Primeiro o do time da casa e depois o dos visitantes. Embora a trilha sonora seguisse por outro lado, os 18 jogadores, perfeitamnete alinhados e com a mão direita sobre o peito, cantaram o tango "Cambalache", cuja letra, esta sim, todos sabiam de cor.
Apesar da vitória também nessa partida (não me lembro do resultado exato), os indignados dirigentes resolveram cancelar a excursão européia e multar todos os jogadores, sem exceção, acusando-os de traidores, apátridas, sabotadores e cretinos.
(Conto retirado do livro "Correios do Tempo", Mario Benedetti, Editora Objetiva)
Nota: Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009) foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio.
2 comentários:
FO-DA!
sempre gosto de ler as coisas que vc indica. saudade grande. e medo de que não sinta também. amo.
Li primavera num espelho partido semana passada.
excelente!
bjs
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