mergulhem-se

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Manual de Instruções, Julio Cortazar


A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza das casas em frente, do sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro HÔTEL DE BELGIQUE.

Enfiar a cabeça como um touro apático contra a massa transparente em cujo centro bebemos café com leite e abrimos o jornal para saber o que aconteceu em qualquer dos cantos do tijolo de cristal. Resistir a que o ato delicado de girar a maçaneta, esse ato pelo qual tudo poderia se transformar, possa cumprir-se com a fria eficácia de um reflexo cotidiano. Até logo, querida. Passe bem.

Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latejar metálico, sua advertência suspeita. Como custa negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lambe até dar-lhe uma suavidade satisfatória. Quanto mais simples é aceitar a fácil solicitação da colher, usá-la para mexer o café.

E não é mau que as coisas nos encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da mesa comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, por que haveria de ser mau? Mas como um touro triste é preciso baixar a cabeça, do centro do tijolo de cristal empurrar para fora, em direção ao outro tão perto de nós, inacessível como o toureiro tão perto do touro. Castigar os olhos fitando isto que anda no céu e aceita astuciosamente o nome de nuvem, sua resposta catalogada na memória. Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua esperança, esse macaco que se coça em cima de uma mesa e treme de frio. Quebre a cabeça desse macaco, corra do centro em direção à parede e abra caminho. Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar em cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar de cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal. E se, de repente, uma traça pára pertinho de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olhe-a, eu a estou olhando, estou apalpando seu coração pequenino, e ouço-a: Essa traça ressoa na pasta de cristal congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.


Trecho inicial, extraído de “Histórias de Cronópios e Famas”, de Julio Cortázar

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